Prof. Ráriton Cassoli

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sexta-feira, 31 de janeiro de 2014



O desafio é ler as entrelinhas



Cresce na vida contemporânea o uso argumentativo de inferências, pressupostos e subentendidos

                                                                                 Por José Luiz Fiorin

Comentando a notícia de que os Estados Unidos espionavam muitos chefes de Estado, entre os quais a chanceler alemã Angela Merkel, o jornal O Estado de S. Paulo disse:
"Um atabalhoado Obama assegurou que seu país não espiona nem irá espionar a chanceler. Faltou dizer o indizível: desde quando parou de espioná-la" (31/10/2013, A3).
Além das informações explícitas de que o presidente Obama deu garantias de que, no presente, os EUA não espionam a chanceler e não irão fazê-lo no futuro, há uma informação implícita: no passado, os EUA a espionaram. Essa informação implícita decorre do
uso do presente do indicativo (não espiona) e do futuro do indicativo (não irá espionar) na oração subordinada substantiva objetiva direta que é dependente sintaticamente do verbo "assegurar", bem como do uso do verbo "parar".

Implicaturas
Trata-se de uma inferência semântica, pois o que se conclui está fundamentado no sentido de palavras ou expressões linguísticas. Só se usa o verbo "parar", por exemplo, para algo que existia anteriormente. Para examinar os dois tipos de inferências semânticas, devemos distinguir significação de sentido e frase de enunciado. A significação é dada pelos elementos linguísticos e pela relação entre eles, enquanto o sentido é o resultado da significação mais as informações do contexto ou da situação de comunicação.  Assim, por exemplo, quando o filho diz para mãe "Não tenho mais camisas limpas", a significação pode ser parafraseada da seguinte maneira: "Não há tal peça de roupa em condições de uso para mim". No entanto, o sentido poderia ser "A senhora poderia lavar essas peças de roupa?".
A frase é uma estrutura linguística caracterizada por relações sintáticas e uma significação, enquanto o enunciado é uma frase a que se adicionam informações retiradas da situação em que ela é enunciada. Isso quer dizer que uma frase pode corresponder a vários enunciados.  Por exemplo, na frase "A Linha Amarela do metrô está parada", a significação poderia ser "O serviço de trens subterrâneos entre o ponto
x e o ponto y está fora de funcionamento". Essa frase poderia corresponder a enunciados como "Vamo-nos atrasar", "Precisamos pegar um táxi", "O serviço de manutenção está precário".

Implícitos
Grice, em artigo publicado em 1975, chama implicaturas as inferências semânticas que se tiram dos enunciados. Usa o termo implicatura em lugar de implicação, porque o primeiro é mais amplo que o segundo.  Com efeito, a implicação é uma inferência provocada por um elemento linguístico, enquanto a implicatura é mais ampla, pois se refere às inferências geradas por expressões linguísticas, pelo contexto, pela situação de comunicação, pelos conhecimentos prévios do falante. Um texto diz mais do que está na sua superfície, pois ele não somente transmite conteúdos explícitos, mas também conteúdos implícitos, marcados no enunciado ou na situação de comunicação, que apreendemos ao fazer inferências. Os conteúdos implícitos podem ser pressupostos e subentendidos. O conteúdo explícito será denominado "posto", enquanto o conteúdo implícito desencadeado pela formulação do enunciado, independentemente da situação de enunciação, será cognominado "pressuposto". Quando se diz "Os fiscais da prefeitura continuam cobrando propina", o conteúdo posto é o de que atualmente eles cobram propina e o conteúdo pressuposto, derivado do uso do verbo "continuar", é o de que eles já cobravam propina anteriormente.. Enquanto o posto é questionável, o pressuposto é verdadeiro ou tomado como tal, pois, se ele fosse falso, os conteúdos explícitos não fariam nenhum sentido. A frase "Hoje não se fuma mais nas salas de aula" só tem sentido se admitirmos como verdade que antigamente se fumava nas salas de aula. O uso da pressuposição é um forte recurso argumentativo, uma vez que ele conduz a aceitar certas ideias do enunciador.


Cumplicidade
Com efeito, introduzir um ponto de vista, sob a forma de pressuposto, torna o interlocutor cúmplice da perspectiva do enunciador, pois o ue é pressuposto não está em discussão, é apresentado como algo certo. Quando se diz "A grande corrupção no governo tornou-se pública graças ao trabalho da imprensa", dá-se como verdade a existência de grande corrupção no governo. Muitas vezes, os pressupostos são generalizações infundadas ou preconceitos: "Ele é político, mas é honesto" (o pressuposto é que todos os políticos são desonestos); "Ele é ecologista, mas tem bom-senso" (o pressuposto é que todos os ecologistas não têm bom-senso). Mesmo a negação contribui para corroborar o que se pressupõe. Quando se pergunta se "Pedro deixou de trair a mulher", a resposta pode ser sim ou não. Mesmo se for não, aceita-se a ideia de que ele a enganava. Por isso, os teóricos dizem que os pressupostos não são sensíveis à negação, à interrogação ou ao encadeamento. Quando se diz "André não parou de beber", "André parou de beber?" ou "André parou de beber, porque está muito doente", estamos negando o posto, fazendo uma interrogação sobre ele, dando um motivo para afirmá-lo, mas, nos três casos, estamos admitindo que André era alcoólatra. A pressuposição aprisiona o enunciatário numa lógica, em que o posto é proposto como verdade, enquanto o pressuposto é imposto como verdade. Quando se diz que o pressuposto não é sensível à negação, não é que não se possa refutar um pressuposto. Só que a negação do pressuposto impede a continuidade da argumentação. Não há nenhum terreno comum para o debate, se os parceiros partem de pressupostos diferentes. Por isso, a negação de um pressuposto é sempre vista como algo agressivo, grosseiro, hostil. Quando se diz "Pedro tomou pouco uísque", pode-se debater se foi pouco ou muito. No entanto, se o outro diz "Pedro nunca bebeu", o mínimo que ele está subentendendo é "Você está louco".
Os principais marcadores de pressuposição são:
a) adjetivos ou palavras similares:
"Ele ganhou sua segunda medalha de ouro"
(o pressuposto é o de que ele já havia ganhado uma medalha antes);
b) verbos que indicam permanência ou mudança de estado (por exemplo, tornar-se, transformar-se, converter-se, ficar, vir a ser, passar
a, deixar de, começar, principiar a, ganhar, perder, permanecer, continuar), bem como verbos que denotam um ponto de vista sobre o que é expresso pelo seu complemento (por exemplo: pretender, alegar, supor, presumir, imaginar, assacar):
"As informações coletadas pelos Estados Unidos continuam armazenadas nos computadores do Serviço Nacional de Segurança"
(o pressuposto é o de que as informações já estavam nos computadores do Serviço Nacional de Segurança);
"O governo dos Estados Unidos pretende que a informação de que tenha espiado governantes de países aliados é mentira"
(o pressuposto é o de que o
enunciador não acredita na veracidade das afirmações do governo dos EUA);
c) certos advérbios:
"O Brasil não tem mais o melhor futebol do mundo"
(o pressuposto é o de que ele já teve o melhor futebol do mundo);
d) conjunções:
"Ela casou com um homem rico, mas é feliz"
(o pressuposto é o de que o casamento com uma pessoa rica sempre é por interesse e, portanto, não é feliz).
e) orações adjetivas:
"Os políticos, que só defendem seus interesses, não estão nem aí para o povo"
(o pressuposto é o de que
todos os políticos só defendem seus interesses: a diferença entre orações subordinadas adjetivas explicativas e restritivas está no pressuposto que elas instauram; a explicativa indica que algo se aplica à totalidade dos membros de um dado conjunto, enquanto a restritiva pressupõe que algo se aplica a apenas uma parte de um determinado grupo; observe-se a diferença entre a oração explicativa acima e a restritiva correspondente: "Os políticos que só defendem seus interesses não estão nem aí para o povo").


Subentendidos
O subentendido, segunda forma de inferência semântica, é uma informação cuja atualização depende da situação de comunicação. Há um caso célebre nas campanhas políticas brasileiras, quando a adversária do então candidato à Prefeitura de São Paulo veiculou uma publicidade em que um locutor perguntava: "Você sabe mesmo quem é o Kassab? Sabe de onde ele veio? Qual a história do seu partido?" Em seguida, aparecia a foto do candidato e o locutor perguntava: "Sabe se ele é casado? Tem filhos?" Nesse caso, o subentendido era de que o candidato era homossexual. A diferença entre pressupostos e subentendidos é que aqueles são de responsabilidade do enunciador, enquanto estes são de responsabilidade do enunciatário. Com efeito, o empresário Mario Amato não pôde negar que, quando disse a respeito da então ministra da Indústria e Comércio, Dorothéa Werneck, "Ela é muito inteligente apesar de ser mulher", ele estava dizendo que as mulheres não são inteligentes.
Refúgio
No entanto, no caso do subentendido, o enunciador pode refugiar-se atrás do sentido literal das palavras, para negar que tenha dito o que disse. Essa foi a primeira tática da candidata que insinuava que seu adversário era homossexual. Ela afirmava que apenas perguntara se ele era casado e tinha filhos, porque o eleitor precisa conhecer também a família do candidato.  O subentendido é uma maneira de dizer sem se comprometer, de dizer sem dizer, de sugerir, mas não afirmar. No exemplo que segue, subentende-se que o ministro do Turismo não tem a menor aptidão para o cargo, pois nem é capaz de lidar com um computador:  "Sem apoio político do partido, Novais (ministro do Turismo), que não queria sair, pediu aos assessores que lhe arrumassem uma máquina de escrever e redigiu sua carta de demissão." (Veja, 21/09/2011, p. 66).
Em geral, chamamos insinuação a um subentendido de conteúdo maldoso:  "Ele tem muito talento para negócios; depois que se elegeu para um cargo público, há vinte anos, conseguiu amealhar um patrimônio invejável".
É evidente que se insinua que a pessoa de quem se fala é alguém corrupto.